segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A Caixinha de Música

Catarina não gostava da cara que tinha. Achava-se feia, com o seu nariz arrebitado,
a boca grande e os olhos muito pequeninos.

Na escola, as crianças não queriam brincar com ela. Preferiam outras companhias.
Corriam pelo pátio, muito alegres, fazendo jogos em que Catarina nunca conseguia
entrar.

Quando a campainha tocava, no fim das aulas, pegava na pasta de cabedal
castanho, punha-a às costas e ia sem pressa para casa, colada às paredes, com medo
das sombras, dos gracejos dos rapazes mais crescidos. Com medo de tudo que
pudesse tornar ainda mais triste a sua vida.

«Tens mesmo cara de bolacha.» - dissera-lhe, dias antes, uma rapariga da sua
turma.

Ficou muito magoada com aquelas palavras que lhe acertaram em cheio, como uma
pedrada, em pleno coração.

E lá andava ela com os seus olhos pequeninos e tristes, com os pés para o lado, a
ver se descobria alguém que conseguisse gostar dela, nem que fosse só um bocadinho.

No caminho para casa encontrava todos os dias o homem do realejo.
Era muito velho e estava sempre a sorrir. Trazia, poisado no ombro, um grande
papagaio de muitas cores que passava o tempo todo a dormitar.

Quase ninguém reparava no velho que tocava cantigas muito antigas, à esquina de
duas ruas sem sol. Era um homem solitário.

Quando fez anos, Catarina levou-lhe uma fatia de bolo de aniversário, com cerejas
cristalizadas e algumas velas em cima. O velho ficou muito comovido, guardou o bolo
dentro de um saco branco e foi-se embora, para ela não ver a sua cara enrugada cheia
de lágrimas.
Um dia, quando saiu da escola, foi procurar o seu amigo. Deixou que ele lhe
agarrasse na mão e ouviu-o dizer numa voz muito sumida:

«Vim hoje aqui com muito sacrifício só para te dizer adeus. Vou partir para muito
longe, mas gostava de te deixar uma recordação minha». Meteu a mão no bolso do
sobretudo e tirou uma pequena caixa de música.
«Esta caixinha é muito, muito velha. Nem se sabe ao certo a sua idade. Sempre que
a abrires e tiveres um desejo ele há-de realizar-se imediatamente».

Catarina ficou muito contente a olhar para a caixa e quando quis agradecer ao amigo
já não o encontrou.

Catarina levou para casa a caixinha de música e escondeu-a com muito cuidado
para ninguém a descobrir. O desejo não demorou a surgir: queria deixar de ser feia.
Pôs-se à frente do espelho, abriu a caixa e pensou no seu desejo com quanta força
tinha. Da caixinha saía uma música muito bonita. Catarina olhou para o espelho cheia
de receio de que o sonho não se tivesse tornado realidade. Mas não. Ninguém iria
acreditar quando a visse com a sua nova cara, o ar alegre e bem disposto.

A sua vida modificou-se completamente. Passou a ter amigos. Já ninguém falava da
sua cara, da sua maneira esquisita de andar.

Um dia perdeu a caixinha de música. Ao fim de uns dias, a magia começou a
desaparecer lentamente. A boca alargou, os olhos voltaram a ficar muito pequenos.
Sentiu de novo uma grande tristeza e apeteceu-lhe fugir para muito longe ou nunca
mais sair de casa.

Ao fim de algum tempo, acabou por se decidir: começou a sair à rua, a ir à escola.
E, com grande surpresa sua, os companheiros de escola, os amigos falavam-lhe
como se nada tivesse acontecido, como se a sua cara não tivesse voltado ao que era
dantes.

A tristeza desapareceu e Catarina percebeu que o importante não é a cara que as
pessoas têm mas a forma como são na vida, no mundo, como sabem ser solidárias
com os outros.
José Jorge Letria, Histórias Quase Fantásticas
Eu e o meu colega André, continuámos esta história...
Passados anos, quando Catarina era mais velha, foi passear a um jardim solitário e vazio, pois tinha tido um dos seus antigos "ataques de tristeza". Esse jardim era imundo, as árvores que antigamente eram bonitas, estavam agora secas e tristes. Não haviam flores nem animais, pois os pássaros que daí emigraram, não votaram, e os outros animais não tinham aí alimento e iam para outro sítio... Ah, e flores, quem as semeava?
Era um sítio triste, por onde passeavam pessoas tristes, olhando o lago poluído, com uma estátua toda suja no meio.
Foi aí que Catarina, enquanto passeava, teve uma surpresa boa e má: encontrou o seu velho amigo, o homem do realejo, que lhe dera a sua caixinha de música e que não via há anos, mas que, para estar ali, provavelmente estava triste.
- Olá, há quanto tempo? O que faz aqui? - perguntou Catarina.
- O mesmo que tu, se calhar... Estou triste, e ando a passear por um sítio triste, como vês. - respondeu o velho, tristemente.
- E o seu realejo, onde está? - perguntou Catarina, receando o pior.
- Estou muito pobre - disse o velho, choramingando - e... tive que o vender...
- Oh... Desculpe perguntar, mas não falamos mais nisso. - e foi a vez de Catarina chorar.
E ficou a olhar o velho, muito velho, de roupa esfarrapada e tão velha quanto ele, grande barba, e a chorar como uma fonte.
- Também não te pergunto porque estás aqui, porque deve ser uma razão tão triste como a minha... - respondeu o velho, muito velho.
E a partir daí, Catarina ia todos os dias visitar o velho, àquele jardim vazio, feio e muito triste, que era a sua nova casa.
Dinis Costa
André França
27/10/2008

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